Os cidadãos, ou a maioria deles, viveu a esperança que a vitória da esquerda pudesse por fim à política de direita. O tempo de esperança esfumou-se na Primavera e a vitória, afinal, não foi da esquerda mas, das esquerdas. O primeiro-ministro não se cansou de afirmar que era um homem de esquerda, da esquerda moderna, quando anunciou o aumento dos impostos. Foi, igualmente, em nome de uma esquerda moderna e da modernidade que congelou as carreiras dos trabalhadores da administração pública e lhes aumentou a idade da reforma. Em nome da esquerda moderna disse aos funcionários públicos, civis ou militares, que ter estabilidade, trabalho com direitos, salário ao fim de cada mês de trabalho, assistência na doença e direito à sua aposentação nas condições que tinham sido acordadas no início de carreira, eram privilégios. E, sendo privilégios teriam que acabar pois o interesse nacional, o equilíbrio das finanças públicas, a moderna esquerda, a globalização e a modernidade, assim o exigiam. Mas no espectro político português existem outras esquerdas para além da que assumiu o poder depois do acto eleitoral de Fevereiro último.
Uma delas tem na sua própria designação a palavra “esquerda”, talvez para que não nos esqueçamos que também eles se sentam, à esquerda, no hemiciclo de São Bento. À semelhança da esquerda que nos governa também esta organização se tem afirmado e reafirmado como uma esquerda moderna. Resta a outra esquerda. Aquela que é só de esquerda e que dessa condição não abdica. A esquerda que se mantém fiel aos princípios e tem um projecto diferente para a humanidade. Fiel porque os pressupostos, que levaram à construção dos princípios, se mantêm, ainda que, adjectivados de montes de modernidade e com uma configuração de mercado global ao qual se associa a modernização da economia com as necessárias adaptações aos modernos mercados. (não custa nada é só “modernizar” a frase para se parecer com o discurso do nosso primeiro-ministro) A esquerda que, sem dogmas, luta ao lado dos trabalhadores e que dá sustentação aos movimentos e causas sociais. A esquerda que não se “moderniza” porque não abdica dos valores, nem trai os princípios a troco do pragmatismo político que possa ter tradução imediata na sua expressão eleitoral. Em Portugal as esquerdas modernas quer a que exerce o poder, quer a outra que poderia associar à sua actual designação a palavra “Moderna”.
Isto para que não sobrassem dúvidas sobre a sua modernidade. Na minha modesta opinião acho que até ficaria até ficaria bem. Correspondia linearmente à essência da sua modernidade, ao seu discurso e forma de intervenção que, indubitavelmente, são modernos. Mas, como dizia, as modernas esquerdas portuguesas estão a propor a realização de um referendo, para depois das autárquicas e antes das presidenciais, sobre a descriminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez. Nada mais a propósito para quem, como julgamos ser sua finalidade, quer resolver o problema do aborto clandestino e acabar com a criminalização das mulheres portuguesas, como trazer esta discussão para uma época em que o mundo católico celebra a natividade. A esquerda, a outra que não é “moderna”, é, no que concerne a este assunto, muito pragmática propondo uma solução que não corre riscos de uma vez mais adiar a resolução deste problema por efeito do calendário. Até compreendo a esquerda moderna! Não tolero é traições. O vocábulo “moderna(o)”, e os que dele derivam, tem servido ao longo do tempo para adjectivar tendências, modas, movimentos estéticos, etc. etc. A sua utilização indiscriminada despiu o vocábulo de qualquer conteúdo, ou seja, hoje temos muita dificuldade em associar um conceito à palavra moderno. Vá-se lá saber o que é e o que representa a esquerda moderna como projecto político.
Aníbal C. Pires em “Politica” No Açoriano Oriental em23 /09/05